Ninfa Parreiras
Poucos
autores da literatura brasileira ficaram conhecidos internacionalmente, com
traduções para dezenas de países. Lygia Bojunga é um deles. Detentora de dois prêmios
internacionais, pelo conjunto da sua obra (Prêmio Hans Christian Andersen –
HCA do International Board on Books for Young People – IBBY, 1982; e Astrid
Lindgren Memorial Award - ALMA, 2004), todos os seus livros são também
premiados no nosso país. São 22 obras em 41 anos de carreira.
Além
desses reconhecimentos notáveis, Lygia é uma empreendedora das palavras. Gosta
de experimentar, de pôr a mão na massa, de tocar as palavras e de ver como se
ajeitam no papel. De brincar com as letras. Como escritora, possui uma obra
voltada ao público infantil, juvenil e adulto. A partir de 1988, com a
publicação de Livro: um encontro com Lygia
Bojunga, as obras têm um foco voltado ao leitor
adulto, pela abordagem das questões subjetivas do nosso universo. Lygia já
havia trabalhado a infidelidade, o abandono, o suicídio, sob a ótica do pequeno
leitor: o olhar, o escutar da criança. Nas obras da década de 1990 em diante,
suas personagens estão voltadas às questões do universo da maturidade adulta,
mesmo quando há a retomada da infância, como em Fazendo Ana Paz,
por exemplo. Ao repararmos sua obra, notamos que o ponto de vista do narrador
cresce com o leitor. Seus primeiros livros podem ser apreciados pelas crianças
e os livros mais recentes são mais apreciados pelos adultos.
Os
recursos que fazem de um texto literatura estão presentes na criação de Lygia
(para citar alguns): o uso da verossimilhança, da metalinguagem, da
intertextualidade, da metáfora, do jogo de palavras, da polissemia. Cada livro
da autora é uma metáfora por si só: da infância, da miséria social, da vida
urbana, da paixão.
Boa
Liga: Pedro do Rio, RJ, 2008
Lygia
experimentou a edição e a produção de livros, feitos de uma forma artesanal. Em
1996, publicou Feito a mão. E em 2002 publica o primeiro livro da Casa Lygia
Bojunga: Retratos de Carolina, que administra hoje juntamente com a
Fundação Cultural Casa Lygia Bojunga no Rio de Janeiro. A Fundação apóia e
desenvolve projetos ligados ao livro. Vale a pena consultar o site e passear
pelas obras e espaços: http://www.casalygiabojunga.com.br
São trabalhos e projetos interligados:
os livros, as personagens, a Casa editora, a Fundação, a Boa Liga, o Paiol de
histórias, o Novo Nicho pra Santa... como se todos formassem uma unidade, nos
moldes da coleção da obra literária (mesmo formato de livros, mesma cor de
fundo nas capas). “Uma costura”, “um redondo”, nas palavras da autora. Um livro
é independente do outro, mas também está ligado a outro por aspectos comuns
(valores universais e sociais, por exemplo); uma personagem é distinta da
outra, mas povoam o mesmo território de criações de Lygia Bojunga. Um projeto
de vida, de autoria, de trabalhos culturais e sociais com coerência e
dedicação!
Há
mais de quinze anos, tenho ministrado cursos e oficinas para adultos sobre a
obra da Lygia, grupos de leitura e de estudo. O que mais me surpreende é a
afetação que a leitura de uma obra provoca no leitor. Depois de ler um conto,
uma novela, o leitor não é a mesma pessoa. As pessoas ficam surpresas ou
incomodadas com alguma coisa da narrativa, a ponto de discutirem contra ou a
favor do destino da personagem. Ficam tocadas de maneiras diferentes. Uma
inquietude gostosa. Há um mergulho apaixonado dos leitores. Alguns se sentem
fazendo parte do contexto da história.
No conto “Tchau”, há quem
fique do lado de Rebeca; há quem fique do lado da mãe... É um conto de ruptura
social e ideológica: a mudança no papel da mulher na sociedade e a mudança na
configuração familiar. Ainda não presenciei um leitor sair neutro depois da
leitura de “Tchau”.
Também
tenho notado como as pessoas se emocionam: suas memórias subjetivas são
reativadas e chega um fluxo de lembranças, de associações, de falas... O
passado vem, mistura-se ao presente. A fala do leitor se mistura à fala da
autora e outro livro passa a existir: o da subjetividade de cada leitor.
Outra
coisa que me chama a atenção é a generosidade da Lygia: ela revela ao leitor
seus passos, seu caminhar, no “Pra você que me lê” (texto que abre ou fecha a
maioria das suas obras). Ela compartilha, divide com o leitor suas dúvidas, seu
processo. Aliás, sua obra se dá em processo, não planejada, construída ao longo
do seu papel como transmissora da cultura brasileira, do linguajar do povo, da
gente das periferias.
Questões
existenciais, sociais, ideológicas... Tudo isso está presente em sua obra. Seus
textos da década de 1970 anteciparam os grandes problemas sociais que vivemos
hoje: violência, abandono, desigualdade social... Algumas palavras de leitoras
sobre seus textos:
“Mas
ela subiu um morro e entrou num barraco? É igualzinha a descrição. Incrível
essa autora!” (em
relação ao conto “O bife e a pipoca”).
“Nossa!
Que maldade com a menina! Mas tem mãe que é ruim assim mesmo. A Lygia mostra
uma mãe bisca. Isso existe mesmo!”
(sobre o conto “Tchau”). “Parece até que
a Lygia foi menino de rua! Vê isso que ela faz nos Colegas. Só quem viveu à
margem, conhece a pobreza.” (sobre Os colegas)
E
agora, lembramos a mensagem “A troca”, publicada em Livro: um encontro com Lygia Bojunga e divulgada na década de oitenta
como mensagem do Dia Internacional do Livro Infantil. Nela, Lygia se revela
como criança, leitora, escritora, mulher, adulta, construtora, criadora, com
uma linguagem poética, deliciosa de ler e de escutar. Uma generosidade com os
leitores e com os livros!
fotos: arquivo pessoal, Boa Liga, verão 2008